Por Renato Aragon (*)
No dia 22 de abril se completaram 20 anos desde a publicação da Lei nº 10.214/2001, que instituiu o Sistema de Transferência de Reservas (STR), considerado o movimento mais transformador de uma série de modificações revolucionárias que ficaram conhecidas como o Novo Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). Na prática, entre outras possibilidades, a normatização reduziu o risco sistêmico e viabilizou o surgimento de instrumentos considerados inovadores para a época, como a TED.
Mais recentemente, este mesmo arcabouço legal também foi a base para a criação do Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI) que proporcionou o surgimento do Pix.
Com essas e outras medidas, exceto para aqueles cujo ‘complexo de vira-latas’ seja tão grande que os impeça de reconhecer qualquer coisa positiva do País, existe um consenso de que o Brasil tem hoje um dos sistemas de pagamento mais modernos do mundo.
O problema é que a evolução da tecnologia transformou a atividade de transacionar valores financeiros em uma das indústrias mais dinâmicas da economia mundial. Por conta disso, mesmo comemorando os êxitos das últimas duas décadas, as autoridades responsáveis pelo SPB se vêem novamente às voltas com a necessidade de decisões difíceis que podem definir se o ritmo de evolução do setor permanecerá tão intenso quanto o dos últimos anos. Ou se haverá uma certa estagnação.
O dilema se instalou quando o Banco Central abriu uma consulta pública no final do ano passado propondo, entre outras coisas, harmonizar as regras relativas à tarifa de intercâmbio (TIC) das operações de cartões pré-pagos às dos cartões de débito. Na prática, a sugestão é de limitar em, no máximo, de 0,5% a TIC para transações tanto feitas com cartões de débito quanto pré-pagos.
Ocorre que, atualmente, as tarifas pagas variam entre 1,1% e 1,5%. Desta forma, o limite proposto na consulta poderia significar uma redução próxima a 50% naquela que tem sido uma das principais fontes de receitas, principalmente para as fintechs.
A possibilidade tem assustado o ecossistema fintech, uma vez que pode surgir justamente no momento em que tanto a conjuntura econômica interna quanto externa tem reduzido a oferta de investimentos nestas startups. Sendo assim, ao não conseguirem captar recursos e perderem este volume de receitas, essas empresas emergentes, que reconhecidamente têm sido um dos fatores de maior relevância para alavancar as inovações do setor, teriam que obrigatoriamente colocar o pé no freio e reduzir o ritmo da inovação.
Em uma análise mais abrangente sobre o tema, é importante ressaltar que no mercado internacional realmente existem experiências de tarifas de intercâmbio na modalidade débito ou pré-pago com taxas bem inferiores às do mercado brasileiro.
Mas isso deve ser o principal parâmetro para pensar nas taxas praticadas no Brasil?
Antes de responder a esta questão, é também preciso reconhecer que as economias e os meios de pagamento são diferentes. O cartão de débito, por exemplo, só pode ser emitido por bancos, porque está atrelado a uma conta corrente. Ele nunca vem sozinho. Geralmente está associado a um cheque especial ou a outros instrumentos de crédito.
Trata-se de um ecossistema grande e sustentado por um arcabouço regulatório próprio que emana toda uma série de necessidades que, talvez, justifique o custo atual da tarifa de intercâmbio.
O cartão pré-pago, por outro lado, é emitido por instituições de pagamentos que têm contas de pagamento e são completamente diferentes do que uma conta corrente. Ele não tem nada atrelado. O usuário apenas deposita um sado e usa. Então, mesmo que tenha serviços financeiros semelhantes a uma conta corrente, eles não têm a elasticidade que um cartão de débito oferece.
Temos então dois marcos. A tarifa de intercâmbio para o débito é uma coisa e para o pré-pago é outra. O ecossistema de um é mais complicado do que o de outro, embora ambos passem pelos mesmos processos de autorização junto ao emissor que envolvem adquirência ou sub adquirência e a bandeira. O fato é que eles são produtos diferentes e a norma peca em dar o mesmo tratamento para ambos.
Considerando estes e outros aspectos, é fundamental que, além da consulta pública, a norma seja muito bem debatida com as associações de classe porque certamente uma mudança destas proporções vai ter impacto.
Nunca é demais lembrar que um dos propósitos das fintechs é promover a concorrência tão relevante na promoção da evolução dos serviços financeiros no mercado nacional.
Caso o BC mude muito o fluxo das receitas, isso pode causar um choque e criar barreiras à inovação. Isso é tudo o que o próprio Banco Central sempre lutou contra nestes 20 anos de ‘Novo SPB’.
Então, já que a história do órgão regulador é tão favorável à inovação, o otimismo não pode ser descartado.
* Renato Aragon é Associate Director da Xsfera